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A Grande Narrativa (poema)

Na sobrevida da 4ª revolução industrial
já não se louva o Sol, a chuva ou o fermento da terra
Louvam-se os apêndices sofisticados que nos tornam obsoletos
num ápice,
Para ficarmos exangues, suspensos no vácuo indolor,
em constante hipertrofia
Até que a cicatriz do cordão umbilical desapareça, um dia
e os corpos
sejam apenas histogramas em análise num banco de dados

A Esfinge devora-nos pelo esquecimento
pela metamorfose que extingue a alma do animal
Perdemos o parentesco com a terra virgem,
é agora a máquina quem dá sinais de vida,
é agora o mecanismo que responde
O afogamento simulado resulta,
pois resulta
para que depois se implore o regresso ao futuro
que já era
Apenas com mais formulários ao pescoço
e novas fórmulas incorporadas
Mas o cidadão a crédito já aqui estava,
pois estava
Assim como a direcção geral das multidões
com o seu divisor comum
que tudo reduz a zero

É ver boca liberal a morder os dentes,
o braço dos direitos a estrangular o pescoço,
o bem-comum em despacho global
a comer-se a si mesmo
Onde estão os tigres da cólera,
que afinal eram lobisomens de papel,
cordeiros na pele de lobo?

Quero ouvir os linces de granito soltando-se dos penhascos
afugentando os gestores do tempo,
aqueles que ordenam novas técnicas inelutáveis
E trocar os seus mundos por árvores
de raízes profundas,
bosques frondosos,
cemitérios de sonhos financeiros descansando em paz

 

M. A.

(Jornal Mapa nº33 – Fevereiro 2022)