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Comunicado do urso pardo (poema)

– mensagem encontrada na boca de um cadáver em avançado estado de decomposição

 

Aos dirigentes e assessores comprometidos
com o adestramento generalizado
da natureza indómita,
sugerimos o encolhimento do crânio
e sua ostentação em júbilo,
sempre que irrompe sobre o asfalto uma floresta inculta
sempre que se interrompe a marcha voraz do Progresso
 
É urgente obstar o poder dos espíritos atormentados
que arrastam a humanidade rumo à liquidação do planeta,
sôfregos de domínio e predomínio
da economia sobre a vida
do império da morte
 
É urgente resgatar a Terra do festim autofágico da civilização
Impedir que lhe perfurem o ventre, comam os ossos,
diluam nas suas veias o infesto desenvolvimento
sustentado
na ignóbil racionalidade humana
em contínua reificação
endossando fraudulentas utopias do hiper-consumo
branqueando o desastre nas memes sagradas do crescimento
da inovação
da produtividade
 
É urgente inverter a perspectiva
Contrapor o olhar anímico do mundo ao louvor antropocêntrico
 
Adorar as pedras, os rios, os bosques, os lagos, as montanhas
Coroar um Abutre-preto
Sentir a seiva dos Freixos, das Gingeiras-bravas, dos Azevinhos
Consentir cada acto de sabotagem contra a catástrofe
Para que um dia possamos ouvir de novo Pã
tocando sua flauta, nas clareiras ao luar
E possamos celebrar a Roda-do-mundo
onde hoje se ouve o ruído ensurdecedor dos motores
onde hoje prolifera a monocultura do Eucalipto,
do Cimento e do Betão
 
Das cinzas ressuscitar rios, árvores, pássaros, insectos
e todas as criaturas esmagadas pelos avanços
da tecnociência
Trazer à vida os lugares mortos pelas barragens
para que regressem verdejantes
e voltem a ser o lar do Lobo, do Lince, do Saramugo,
da Lontra-do-velho-mundo
e de todas as criaturas ameaçadas
pela expansão da engenharia e da agroindústria
 
Poder voltar a colectar ostras, búzios, lapas
onde hoje se acumula óleo, plástico
e lama radioactiva
dos cargueiros e da indústria
 
Não viver mais enclausurado, respirando o ar condicionado
das cidades em convalescença
e suas neblinas tóxicas
Poder meditar com as estrelas
envolto nos mistérios da noite escura das corujas
 
Não voltar a ouvir falar no produto interno bruto,
nas maravilhas do estado social
ou nas virtudes dos mercados
Porque era tudo demasiado humano
Ao regressares à Terra ela cuida de ti
 
Não perder mais tempo desensofrido,
cismando na entrevista de emprego,
nas férias prometidas, no sucesso profissional
Porque era tudo demasiado inútil face à grandeza e à riqueza
do mundo que vamos destruindo
 
Ter tudo por fazer parte do todo
Não ser apenas um apêndice tecnológico descartável
nem um carcinoma da razão
na era do antropoceno

 

(Jornal Mapa nº24 – Agosto 2019)