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Montanhas de jurisprudência: a natureza dos «direitos da natureza»

«Entre amantes não há deveres nem direitos»
Edward Carpenter

 

Estando eu habituado a saudar o rio sempre que me atrevo pelas suas escarpas de granito, fisgando plumas na água, partilhando a intimidade dos freixos, dos musgos e de uma infinidade de seres que fazem os lugares, nunca me tinha ocorrido que um dia estes quisessem formar partido ou reclamar direitos. Não porque sejam desprovidos de agência ou senciência, mas porque somos parte da mesma comunidade e não queremos ser representados, nem circunscritos pelas contingências da Lei. Eu, o rio, as árvores, os animais e as montanhas somos contíguos em muitos sentidos. A água e o ar que respiramos são parte da nossa constituição, as existências e os fenómenos desses lugares formam aquilo que somos e o nosso mundo. Por essa razão, o rio, as montanhas, as lontras ou as bétulas reclamarem direitos seria o mesmo que a minha perna se separasse do meu corpo e também reclamasse direitos. E isso implicaria uma amputação! Em família entendemo-nos, porque precisaríamos de codificar as nossas relações? É certo que alguns verão no rio apenas um recurso a ser explorado, humilhado, outros querem vê-lo como uma entidade jurídica — mas isso foi porque se separaram dele há muito tempo… Não será a jurisprudência a restabelecer esse equilíbrio — instituir direitos implica criar protocolos, estabelecer contratos, regular, dividir, civilizar… Do mesmo modo que não quero separar-me da minha perna, não quero portanto que me separem do rio ou das montanhas que me viram nascer.

A atribuição de direitos a rios, florestas, montanhas, oceanos ou animais, parte do princípio de que os ecossistemas ou as espécies possuem direitos inatos, de forma semelhante à ideia de direitos humanos. A extensão de direitos legais ao mundo natural inscreve-se por isso na tradição liberal do Ocidente. Segundo os seus teóricos remonta ao lançamento da Magna Carta ou à Revolução Americana [1]The Rights of Nature. A History of Environmental Ethics – Roderick Nash (1989) , não obstando a que essa ideia de direitos inalienáveis tenha sido originalmente útil aos colonos ingleses para justificar a usurpação de territórios indígenas[2]John Locke and America: The Defence of English Colonialism, Barbara Arneil (1996) — e favorecer mercadores, proprietários de plantações e proprietários de escravos. John Locke, o célebre filósofo do Iluminismo e fundador da ética liberal, um beneficiário directo da escravatura e do colonialismo, fundamentou-se no conceito de Lei Natural para deduzir o que considerava serem direitos inalienáveis, concedidos pelo «criador» — o direito à vida, à liberdade e à propriedade[3]Two Treatises of Government, John Locke (1689) . A existência de direitos naturais era óbvia, como escreve Bob Black, «para os filósofos eurocêntricos, brancos, cristãos, heteronormativos, burgueses do século XVII»[4]The Myth of Human Rights, Bob Black (2021) . Como também era óbvio, embora nunca se tenha provado, que existiam valores intrínsecos a todos os seres humanos, dos quais se podiam aferir, através da razão, padrões morais universais…

O discurso dos direitos humanos surge na continuação da hegemonia cultural do Ocidente iniciada com a colonização do «Novo Mundo». É hoje usado na promoção ideológica do capitalismo, servindo como pretexto para a globalização económica e militar. No passado, a humanização do «bárbaro» ou do «selvagem» significava uma conversão forçada aos valores do Cristianismo; desde a época iluminista essa missão «civilizadora» secularizou-se, passando a impor a «razão e a boa governação»[5]Seven Theses on Human Rights: The Idea of Humanity, Costas Douzinas (2013) . Através de convenções, cartas de direitos e declarações universais, a ideologia do humanismo legitima uma hierarquia moral e política, sedimentada numa visão arbitrária sobre o que constitui a essência da Humanidade. Esta ideia abstrata e normativa do «ser humano» é, como diria Max Stirner, um «espectro», a partir da qual se instituem direitos que «transformam pessoas reais em cifras abstratas»[6]Adikia: On Communism and Rights, Costas Douzinas (2010) . Através da imposição ou da inclusão é estabelecida uma ordem legal formada por governantes, governados e excluídos. Fazem parte destas últimas duas categorias as existências não-humanas — como a dos animais, das plantas ou dos minerais — servindo apenas como recurso para se atingir o ideal da Humanidade. A universalidade dos direitos humanos advém da supremacia do «humano», que é um predicado do antropocentrismo.

A chamada Jurisprudência da Terra, onde se inclui a ideia de «direitos da natureza», é uma filosofia do Direito que considera o antropocentrismo como a origem dos problemas ambientais. Os seus proponentes pretendem inverter esse paradigma, pondo a Terra ou a Biosfera no centro das decisões jurídico-políticas, derivando os princípios éticos e morais do «Direito ecocêntrico» com base no que assumem ser as «leis da natureza». De acordo com esta teoria, os direitos não são concedidos pelo «criador», como na teoria dos Direitos Naturais de Locke, mas pela «Terra» ou pela «Grande Jurisprudência»[7]A theory of Earth Jurisprudence, Peter Burdon (2012) . Esta assunção tem um problema pois as «leis da natureza» não podem ser prescritas, quando muito podem ser observadas — os salmões não vão desovar ao rio por força de um acto legislativo.

A filosofia dos «direitos da natureza» é muitas vezes apresentada como tendo origem ou correspondência nas cosmovisões dos povos indígenas, onde predominam os lugares sagrados, as relações de parentesco entre humanos, animais e elementos da natureza, a sua interdependência, respeito e equilíbrio. Esta conotação começa por ser omissa pois essa ideia foi inicialmente proposta por um advogado americano[8]Should Trees Have Standing? Law, Morality, and the Environment, Christopher D. Stone (1972) . Mas é sobretudo um paradoxo porque o reconhecimento de direitos legais é uma construção ocidental e antropocêntrica. Os povos indígenas nunca reconheceram direitos legais abstratos nem possuem tais conceitos. Insistir nessa genealogia significa desnaturalizar as ontologias indígenas, reduzindo-as a um formalismo legal e, em simultâneo, naturalizar a ideia de direitos. Por outro lado, o biocentrismo, de forma semelhante ao humanismo, fundamenta-se num conceito moral e abstrato ao pressupor que toda a «vida» — e não apenas a «humanidade» — tem valor intrínseco e deve ser protegida. Ignora, por exemplo, que o modo de vida harmonioso e mutualista dos povos indígenas também inclui a predação.

Em 2008, o Equador tornou-se o primeiro país a codificar na sua Constituição os «direitos da natureza», após décadas de intensas lutas pelo reconhecimento dos territórios indígenas constantemente ameaçados pela exploração de recursos naturais A nova Constituição surgiu durante a denominada «revolução cidadã», iniciada com o governo de esquerda do presidente Rafael Correa e apresentando-se como uma alternativa às políticas de desenvolvimento dos governos anteriores. O novo texto passou a incluir o regime do «Bom Viver»[9]Tradução de «Sumak Kawsay», expressão originária da língua quíchua. e os direitos da Pachamama[10]Mãe Terra, dois conceitos recuperados das culturas indígenas dos Andes. Embora a ideia de direitos seja uma contradição para o seu imaginário, e «natureza» seja uma tradução imprecisa de Pachamama, a iniciativa constitucional foi aclamada pelos movimentos indígenas, pois era vista como fazendo parte de uma estratégia mais alargada de consolidação territorial[11]Environment, Political Representation, and the Challenge of Rights – Speaking for Nature, Mihnea Tanasescu (2016) . Isto aconteceu quase na mesma altura em que Rafael Correa começou a promover a mineração como elemento central para o desenvolvimento da economia[12]Com a aprovação da Lei de Mineração em 2009., favorecendo a extracção de minérios em áreas preservadas e tradicionalmente ocupadas por esses povos. Correa tinha outra estratégia, destinada a pacificar a diversidade das lutas contra o extractivismo, nas quais se incluía um historial de acção directa e sabotagens. Desde então, vários projectos têm tido lugar no país com consequências devastadoras para o ambiente e para as comunidades, como são os casos da extracção de petróleo nas reservas do parque Yasuní, da construção da hidroelétrica Coca-Codo na Amazónia, ou dos vários projectos de mineração de metais levados a cabo por empresas chinesas.

A Nova Zelândia é outro país frequentemente apontado como exemplo da implementação dos «direitos da natureza». Em vez de incorporar essa doutrina na sua Constituição, optou por uma aproximação mais explícita, tendo reconhecido personalidade jurídica ao rio Whanganui, ao parque natural Te Urewera e ao monte Taranaki. Desde a chegada dos colonizadores europeus em meados do século XIX, estes lugares têm sido motivo de conflitos e negociações entre o povo Maori e os sucessivos governos coloniais. O rio Whanganui ganhou estatuto de personalidade jurídica em 2012. As tribos que historicamente habitam as suas margens vêem o rio como um antepassado, uma entidade viva e dotada de agência da qual depende o seu «bem-estar» material e espiritual. Desde a industrialização do país que o Te Awa Tupua[13]Nome pelo qual o rio é conhecido para os Maori. Tapua significa antepassado. tem vindo a ser degradado como resultado da extracção de recursos, da construção de barragens, da crescente urbanização, dos efeitos da agricultura e do turismo. A solução encontrada pelo governo neozelandês para resolver os sucessivos litígios sobre a posse do rio — que para os Maori tem um significado ontológico profundamente distinto de «propriedade» — foi criar o estatuto de personalidade jurídica. O rio passou a ser representado por uma comissão composta por dois guardiões, um advogado representando o governo, outro representando a tribo Whanganui. Este sistema de cogestão deveria, em teoria, assegurar o «bem estar» do rio, mas até à data não foi cancelado nenhum dos nocivos empreendimentos que continuam a ameaçar a sua vitalidade.

As provisões constitucionais acabam, na melhor das hipóteses, por se reduzir a um exercício simbólico, fomentando mais uma forma de «lavagem verde». No entanto, não deixa de ser sintomático que o Estado — um perpetrador histórico da violência e do colonialismo — se tenha tornado o mediador da resolução de conflitos e venha propor o reconhecimento destes direitos como forma de compensação. Os povos indígenas têm razões de sobra para desconfiar destas intenções, até porque os «direitos da natureza» podem servir como estratégia política para fazer divergir a atenção das suas lutas pela autodeterminação que incluem a posse de território e recursos. E podem servir também a narrativa conservacionista que tem demonstrado resultados desastrosos, tanto para o ambiente como para os povos indígenas, estando associada ao colonialismo, ao racismo e à exclusão deliberada dos nativos[14]The Big Conservation Lie, John Mbaria e Mordecai Ogada (2016) .

Nos últimos anos o constitucionalismo ambientalista ficou de moda. O Parlamento Europeu encomendou um estudo[15]Can Nature get it Right? A Study on Rights of Nature in the European Context, europarl.europa.eu (2021) sobre o tema, as Nações Unidas aprovaram uma resolução. O objectivo, dizem, é promover a «harmonia com a natureza»[16]United Nations General Assembly Harmony with Nature: Note by the Secretary General (2019) através da «governação centrada na Terra», inserindo os «direitos da natureza» nos sistemas legais internacionais…

Independentemente das intenções de muitos activistas ou da utilidade estratégica que o sistema legal pode ter em casos pontuais[17]Ver, por exemplo, o trabalho da Survival International, o biocentrismo não constitui um desafio real ao antropocentrismo pois está ausente ou é ambíguo sobre o contexto e as relações sociais que tornam a actividade humana tão destrutiva para os ecossistemas. Por isso não admira que as suas propostas se limitem à elaboração de mais leis, conceitos jurídicos e à reforma do sistema legal. Se a «natureza» e a «terra» são a fonte normativa de regras morais e legais, será possível, a partir daí, estabelecer um novo tipo de relações humanas e não-humanas, ou inverter o corrente paradigma?

 

M. A.

(Jornal Mapa nº32 – Outubro 2021)

 

 

 

 

 

References

References
1 The Rights of Nature. A History of Environmental Ethics – Roderick Nash (1989)
2 John Locke and America: The Defence of English Colonialism, Barbara Arneil (1996)
3 Two Treatises of Government, John Locke (1689)
4 The Myth of Human Rights, Bob Black (2021)
5 Seven Theses on Human Rights: The Idea of Humanity, Costas Douzinas (2013)
6 Adikia: On Communism and Rights, Costas Douzinas (2010)
7 A theory of Earth Jurisprudence, Peter Burdon (2012)
8 Should Trees Have Standing? Law, Morality, and the Environment, Christopher D. Stone (1972)
9 Tradução de «Sumak Kawsay», expressão originária da língua quíchua.
10 Mãe Terra
11 Environment, Political Representation, and the Challenge of Rights – Speaking for Nature, Mihnea Tanasescu (2016)
12 Com a aprovação da Lei de Mineração em 2009.
13 Nome pelo qual o rio é conhecido para os Maori. Tapua significa antepassado.
14 The Big Conservation Lie, John Mbaria e Mordecai Ogada (2016)
15 Can Nature get it Right? A Study on Rights of Nature in the European Context, europarl.europa.eu (2021)
16 United Nations General Assembly Harmony with Nature: Note by the Secretary General (2019)
17 Ver, por exemplo, o trabalho da Survival International